terça-feira, janeiro 02, 2007

Capítulo Três

Os senhores do universo




“O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração.
Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo com ações interdependentes.
Esse conceito só pode ser entendido pelo coração,
ou seja, de uma natureza interna de cada um” – Kaka Werá Jecupé
(Pajé e escritor guarani)


O casal Karaí foi designado como os “donos e vigias das chamas crepitantes”. O que são as chamas que os Karaí vigiam? É o fogo. Karaí é a entidade espiritual que rege, controla, e manda no fogo, um dos símbolos do espírito. Ao escutar as trovoadas que são freqüentes nos meses da primavera, os filhos de Nhamandú, na Terra, dizem estar ouvindo o crepitar das chamas. É como se nos céus estivessem queimando o campo e o barulho do fogo, lá em cima, é o que se escuta aqui como trovão.

Ao casal Jakairá, Nhamandú disse:

“Vigiarás a Fonte da Neblina que gera as palavras inspiradas. Faz com que seus filhos vigiem aquilo que concebi em minha solidão, e em virtude disso faz com que se chamem: donos da Neblina das palavras Inspiradas”


O que são as Neblinas? O que são as Neblinas das Palavras inspiradas? Entender o que são as neblinas é um desafio. As Neblinas devem ser entendidas pelo coração e não pelas palavras abundantes. Num primeiro plano a Neblina é a neblina que se vê, subindo dos rios, dos lagos, logo após o raiar do dia no final da primavera. São também as neblinas vaporosas que sobem das cachoeiras, das Cataratas.

Em um segundo plano, a Neblina é representada pela fumaça – especialmente a fumaça do cachimbo sagrado usado para curar doenças e que simboliza a união entre diferentes dimensões. Em um terceiro plano, a Neblina é energia sutil, leve que está no ar e que pode ser respirada, inspirada, conspirada. É o “Ki” ou “Chi” do budismo. É o “Prana” hindu. É o “Qudra” dos sufis. Em um quarto plano é aquela energia que inspira a consciência e que leva à transformação. Em um quinto plano é a energia que leva à transcendência. Em um sexto plano é a levíssima energia que abre o caminho para as visões especialmente a grande visão de um universo onde tudo é parte de tudo. Onde ninguém está isolado. É a visão do grande amor que tudo iluminava nos dias em que Nhamandú vivia na primitiva escuridão. Finalmente em um sétimo nível, as neblinas são as palavras inspiradas, a palavra criadora – aquela chuva criativa baseada na palavra que leva à liberação. Ao nirvana. Ás boas palavras, das visões, dos sonhos que criam e transformam.


Já os Tupãs receberam responsabilidades enormes. Nhamandú entregou-lhes o trovão, o extenso mar, suas ramificações, e aquilo que refresca. Tupã é a entidade controladora da chuva. Quando chove, no meio de relâmpagos e trovões, Tupã controla tudo e deixa cair a chuva copiosamente para refrescar a terra, e seus filhos, todos os animais e plantas que vivem sobre ela. Quando chove, não é só água que cai. A chuva que refresca também é um símbolo espiritual da temperança.

A temperança é um dos presentes de Tupã. Se não fosse a temperança, as pessoas brigariam e se matariam. Por isso quando a chuva cai, ela é ela mesma, a chuva. Mas no sentido espiritual ela significa a leveza de coração que todas as religiões tentam pedir que as pessoas tenham. A Bíblia chama de temperança, longanimidade, mansidão. Os índios em sua linguagem secreta e espiritual a chama de “aquilo que refresca” – e que o bom entendedor entenda.

Tupã é, entre as divindades de Nhamandú, a que parece ter o maior número de tarefas. Além de ser o regente das águas e da chuva, ele é também o protetor, o regente, o administrador do grande mar.
As nações guaranis conheciam e conhecem o mar desde antes da chegada dos portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e os negros – trazidos como escravos. Até hoje, são várias as aldeias guaranis no litoral brasileiro – no estado do Paraná, em Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro. Tudo dentro da administração de Tupã. Tupã ou os Tupãs são também os guardiões das inúmeras ramificações do mar.

E o que são as ramificações do mar? São os rios, os riachos, os riachuelos, os igarás, os igarapés, os igapós, os cursos d’água tanto grandes como pequenos que cortam, não só o território onde viveram ou vivem os filhos guaranis de Nhamandú, mas todos os rios do Planeta.

A Fonte da Neblina Criativa, popularmente conhecida como as Cataratas do Iguaçu, estão sob a regência de Tupã. O rio que cai na fenda da terra. A água que despenca sobre o nada, as nuvens que se formam da Neblina, a chuva que retorna à Terra, o arco-íris, todos os rios que nascem nos dois lados do rio Iguaçu – tudo é administrado por Tupã Ru (pai Tupã), por Tupã Cy (Mãe Tupã). Na Fonte da Neblina Criativa o peregrino está nas mãos de Tupã. Dizemos peregrinos e não turistas. Pois turista é uma palavra daquelas em que não há mais vida. Esta é uma lembrança – a primeira lembrança que se pode ter na Terra das Muitas Águas de Nhamandú.

Com sorte o Neblineiro, o buscador da boa lembrança chegará à Fonte da Neblina Criativa durante uma tempestade com chuva, trovão, neblina, raios e trovões. Aí acontece o encontro perfeito. Estão trabalhando Tupã, Karaí e Jakairá. Sob a direção de Nhamandú de Coração Grande que por sua vez opera sob direção amorosa de Nhamandú Guaçu – a suprema consciência. A vontade de Nhamandú está se realizando: as águas que correm no cânion, as águas que caem de cima, o crepitar da chama, a Neblina, a temperança, a bondade. No mundo holístico guarani a fronteira entre o real e o não real não é muito bem definida. A bondade, o amor, a temperança também caem do céu assim como a chuva. É sua tarefa saber se banhar nas chuvas de amor, na Neblina da sabedoria e na tempestade trovejante da temperança.

As Cataratas do Iguaçu são um Lugar Sagrado de Paz e Poder. É sagrado porque, como vimos, é um lugar sem fronteira, uma ponte entre o mundo dos fenômenos perfeitamente explicados pela ciência redutora e o mundo sutil onde nada é o que parece ser. Visão que, como veremos mais tarde, está sendo adotada pela nova ciência que começou a ver que em tudo há níveis diferentes e tudo depende de como as coisas são olhadas. É também um Lugar de Paz em todos os sentidos. Paz não é simplesmente a ausência de guerra. Paz é, como o amor, um estado de consciência. Um estado onde se compreende tudo. A Paz é simbolizada pela Neblina que refresca do corpo físico ao mais sutil dos planos. Pela Chuva que dá temperança. Pelo trovão que vem do fogo e queima as imensas limitações da vida criadas pela nossa própria civilização. Na Fonte da Neblina, o Neblineiro tem que se molhar com água, garoa, neblina, amor, paz e temperança.

Mas por que as Cataratas Sagradas e os outros Lugares Sagrados são Lugares de Poder? Não se trata do poder político. Do poder militar. Do poder financeiro. A ilusão destes poderes se encontra em Brasília, Buenos Aires, Washington, nas capitais provinciais, departamentais e estaduais dos países do mundo. Se encontra nos depósitos militares, nas 28.000 ogivas nucleares intactas que os Estados Unidos da América e a Federação Russa possuem. Se encontra nas bolsas de valores e centros financeiros. Se encontra também nas inter-relações destes poderes.

O Poder que se encontra nos Lugares Sagrados é o poder pessoal que nos libera das mentiras e ideologias que não são partes originárias de nós, como indivíduos, em quem há a chama da “consciência da divindade” infundida por Nhamandu. As qualidades fundamentais da vida, todos portamos dentro de nós. São a harmonia, a sabedoria, o poder, o amor, a eternidade e a infinidade. Somos harmônicos, sábios, poderosos, amorosos, eternos e infinitos.

Muito longe dos ambientes místicos, o comunicólogo brasileiro Leão Serva disse sobre a metralhadora de palavras que nos bombardeia diariamente: “Ao contrário do que dizia Francis Bacon, o excesso de informação, é hoje causa de perda do poder individual”. É deste poder que estamos falando.

O Lugar de Paz e Poder representa estas qualidades onipotentes. Harmonia é paz, equilíbrio interno e externo. Sabedoria é uma palavra muito interessante – no sentido de conduzirmos nosso interesse para o seu verdadeiro significado. “Sabedoria” vem da mesma raiz que a palavra “sabor”. Saber no sentido de saborear. Não é do uso corrente do português perguntar: a que sabe este sorvete? Mas está correto. Em vez disso perguntamos: “Este sorvete tem gosto de quê? Ou de que sabor é este sorvete? O sábio não é aquele que acumulou muito conhecimento. Sábio é aquele que saboreou ou saboreia o universo e dele aprende através de todos os sentidos. O sábio saboreador experimenta de tudo. Já a palavra sábio em guarani é “Arandu”. “Ara” é o universo e “ndu” é a raiz do verbo escutar. Assim para o guarani, sábio é aquele que escuta o universo. Esta sabedoria está nos Lugares Sagrados. Abramos então nossos ouvidos para escutar o universo.

Estão nos Lugares Sagrados também o amor e o poder, a eternidade e a nossa infinidade. Tudo como estados dinâmicos de consciência. Esse grande poder e as outras qualidades onipotentes, que são nossos por direito, não interessa ao gigantesco sistema sócio-econômico-cultural que criamos, artificialmente. Reduzir-nos a ossos que caminham, sem vida, é a grande meta deste sistema. Na visão guarani isso já aconteceu. Estamos reduzidos a ossos que caminham. Mas os guaranis têm uma profecia que diz que em alguma interconexão dos tempos, a consciência divina irá, de novo, ser infundida nesses ossos vítimas da cultura generalizada e destrutiva. Então tudo ressurgirá. Tudo será visto como deveria ser. Pessoas conscientes de serem parte de algo grande, enorme, sem limite. Em vez de sermos ossos que andam e dirigem carros e geram superávits, nos veremos como mini-universos, reflexos do universo onde nada nos é estranho.

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